terça-feira, 2 de dezembro de 2008

"Hegemonia do esquecimento"

"Aqui no Brasil, escondemos o passado. Até hoje os militares não revelam onde estão enterrados os mortos do Araguaia e onde estão os restos de mais de uma centena de “desaparecidos políticos”. Os torturadores e matadores nada tiveram de confessar. Abrigam-se sob a proteção de uma Lei de Anistia para apagar o passado, para impedir que se forme uma memória nacional dos que lutaram contra a opressão.

E tem sido sempre assim. Rui Barbosa mandou queimar os documentos da escravatura, sob o pretexto de que serviriam para os fazendeiros reclamarem indenizações pela libertação dos escravos. No interior de Minas, em Belo Vale, um pequeno museu proclama-se o “único museu da escravidão” no Brasil. Outro em São Vicente (SP) nada mais é do que uma casinha de taipas. O Museu do Índio em Brasília não é dedicado ao massacre dos índios, é uma exposição de arte e artesanato indígena. Os dois grandes museus afro-brasileiros, um em São Paulo outro na Bahia, também se dedicam muito mais a arte e cultura do que à denúncia da escravidão. O prédio do Departamento de Ordem Política e Social (Dops) em São Paulo virou galeria de arte, reservando quatro minúsculas celas, do lado de fora da entrada principal, para lembrar os tempos sombrios em que naquele prédio o delegado Sérgio Paranhos Fleury torturava e matava.

Não só ignoramos os que lutaram contra a opressão como homenageamos os opressores. O próprio Fleury virou nome de rua, em São Carlos. No Rio de Janeiro e em várias cidades há um viaduto “31 de Março”, em homenagem ao golpe militar. Em todas as cidades do Brasil há ruas, viadutos, rodovias e praças em homenagem a golpistas e bandeirantes que caçavam e dizimavam índios e escravos fugidos.

Tudo isso exemplifica o que em teoria política se chama hegemonia: a dominação não apenas pela força, mas pela cultura, pela ideologia, pelos meios de comunicação e pela forma como se conta para nossas crianças quem foram nossos heróis e nossos vilões. Deter a hegemonia é mais do que apenas dominar, é fazer com que o dominado aceite a dominação como natural.

Os negros na África do Sul acabaram com a hegemonia da minoria branca. No Brasil elegemos um operário presidente, mas não acabamos com a hegemonia de uma elite formada na tradição escravocrata. Derrubamos a ditadura militar, mas o grupo Tortura Nunca Mais é tratado pela mídia quase como uma organização clandestina.

Mister Simon, o nosso guia em Johannesburgo, fez questão de nos levar ao bairro grã-fino com propriedades imensas e palacetes. Num certo momento apontou para um deles e explicou: “Aqui mora o Mandela, lá pelas 5 da tarde ele costuma sair para seu passeio diário”. Perguntei: “Mister Simon, o fato de Mandela morar no bairro dos ricos é motivo de orgulho para os africanos ou acham que ele traiu o povo pobre?”

Simon custou a entender a pergunta; e finalmente respondeu: “É claro que sentimos orgulho, ora essa.


Nosso líder tem mesmo de morar aqui, para mostrar que as coisas mudaram”.

Envergonhado, expliquei-me: “No meu país elegemos pela primeira vez um operário para presidente e, em vez de se orgulharem disso, os jornais, a maioria dos que têm voz fazem questão de destratá-lo. Acham que não deveria ter comprado um novo avião para suas viagens, que gasta demais, que tem seguranças demais...”




Tudo uma questão de hegemonia. Quem sabe um dia chegaremos lá. Aí vamos trocar todas as placas de rua e espaços públicos, construir um grande museu da escravidão e outro grande museu dos horrores da ditadura. Para que as novas gerações saibam o que aconteceu e não permitam que aconteça de novo."




( Parte da reportagem "Apartheid nunca mais", da Revista Brasil, edição nº24 )

2 comentários:

Paula disse...

essa revista brasil estiga, hein? dei valor.

kursch disse...

O problema no Brasil é que não se valoriza a vitória. Quem conseguiu subir na vida, geralmente se envergonha de demonstrar suas posses. Cultuamos os "coitadinhos". É o que o pessoal chama a de "Culpa Católica".

Sobre a questão dos escravos, tem uns artigos bem bacanas nesse site, falando do racismo no Brasil:
www.interney.net/blogs/lll/?cat=2280